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Sei que o meu trabalho é uma gota no oceano, mas sem ele o oceano seria menor - Madre Teresa de Calcutá

Galactosemia


Definição

A galactosemia é um erro inato do metabolismo, caracterizado por uma inabilidade em converter galactose em glicose da maneira normal. O resultado imediato é o acúmulo de metabólitos da galactose no organismo.

A lactose do leite é a principal fonte de galactose na dieta. A hidrólise da lactose resulta em glicose e galactose. O principal passo do metabolismo da galactose, em humanos, é a conversão de galactose em glicose, o que requer várias etapas, a via de Leloir.

Três deficiências enzimáticas na via de Leloir causam galactosemia. As enzimas são a galactose-1-fosfato uridil-transferase (GALT), a galactoquinase (GALK), e a uridina-difosfato galactose 4-epimerase (GALE).Os genes, responsáveis pelas enzimas em questão, já foram mapeados e clonados, e suas respectivas localizações são: GALT - 9p13, GALK - 17q24 e GALE - 1p36. Heterogeneidade alélica foi encontrada nos três loci. Pelo menos, 91 mutações no gene da GALT foram identificadas até hoje e a maioria dos pacientes com deficiência de GALT é heterozigoto composto.

Já que há três etiologias para a galactosemia, o termo se tornou inadequado. As três doenças conhecidas são atualmente designadas:galactosemia por deficiência de GALT, galactosemia por deficiência de GALK e galactosemia por deficiência de GALE . O tipo mais comum da doença é devido à deficiência de galactose-1-fosfato uridil-transferase. Os três subtipos de galactosemia apresentam padrão de herança autossômico recessivo.

Aspectos Bioquímicos

O metabolismo da galactose, de bactérias a humanos, ocorre através de três passos enzimáticos que são catalisados, seqüencialmente, pela GALK, GALT e GALE. A galactose pode ser convertida em energia entrando na via glicolítica, porque a glicose-1-fosfato é um dos produtos da GALT. A galactose pode, também, ser incorporada em glicoproteínas e glicolípides, porque a UDP-galactose, o segundo produto da reação da GALT, é o substrato de todas as reações de galactosilação.

A galactose é fosforilada pela galactoquinase, na presença de ATP, para formar galactose-1-fosfato (gal-1-P). A Gal-1-P reage com a UDP-glicose para produzir dois produtos: a UDP-galactose e a glicose-1-fosfato (gli-1-P), numa reação catalisada pela enzima galactose-1-fosfato uridil-transferase. A gli-1-P produzida pode ser convertida a glicose. Em um fígado normal, aproximadamente 80% da galactose é convertida em glicose em pouco tempo. A UDP-galactose formada é convertida em UDP-glicose pela GALE. Sendo, assim, a UDP-glicose pode entrar na reação, novamente, de uma forma cíclica, até que toda a galactose, que entra na via, possa ser convertida a glicose, via gli-1-P.

Quando não há entrada de galactose na via metabólica, ou por bloqueio enzimático, ou por falta de ingestão, é ativado um mecanismo de formação da UDP-galactose. A UDP-galactose é um importante doador de galactose para a formação dos complexos glicoprotéicos e glicolipídicos. Estes compostos se transformam nas células, levando à liberação de galactose, que pode entrar, novamente, na via de metabolismo da galactose. Isto ocorre pela interação de gli-1-P com UTP, via a atividade da UDP-glicose fosforilase, resultando em UDP-glicose que, então, sofre epimerização (via GALE), para formar UDP-galactose. A reação da epimerase mantém o equilíbrio, em todas as células, entre UDP-glicose e UDP-galactose, em torno de 3:1.

Se houver uma incapacidade em metabolizar a galactose, por baixa atividade de GALK, GALT, ou GALE, duas vias alternativas entram em ação. A galactose pode ser reduzida a galactitol, por intermédio da aldose redutase, ou oxidada a galactonato, por intermédio da oxidase ou da desidrogenase. O galactonato pode ser, posteriormente, metabolizado a CO2 e xilose.

Aspectos Clínicos

Os sintomas, usualmente, aparecem dentro dos primeiros dias ou semanas de vida, e podem incluir: anorexia, perda de peso, icterícia, hepato-esplenomegalia, ascite, vômitos, diarréia, distensão abdominal, catarata, hemorragia, letargia, septicemia e atraso de desenvolvimento psicomotor.

O sinal clínico mais comum é a falência do crescimento, que ocorre em quase todos os casos. A maioria dos pacientes manifesta icterícia durante as primeiras semanas de vida. Pacientes expostos a quantidades ilimitadas de leite, eventualmente, exibem evidências de doença hepática, com hepatomegalia e testes de função hepática alterados. Doença hepática não tratada pode progredir para cirrose. Por razões desconhecidas, a ascite parece ser um achado precoce, até, em alguns pacientes sem hipertensão portal ou hipoalbuminemia severa .

Parece haver uma alta freqüência de óbito neonatal, devido à septicemia por E. coli, com um curso fulminante. A propensão à septicemia é devida a uma inibição da atividade bactericida dos leucócitos.

Sinais de aumento da pressão intracraniana e edema cerebral podem ser observados, porém, letargia e hipotonia são os achados mais freqüentes.

Atraso no desenvolvimento psicomotor pode ser observado nos primeiros meses de vida, podendo evoluir para retardo mental nos casos não tratados. Mesmo submetidos a uma terapêutica correta e com início precoce, estes pacientes podem vir a apresentar dispraxia verbal.

A presença de catarata tem sido observada nos primeiros dias após o nascimento. A catarata é reversível, se o paciente iniciar o tratamento precocemente. A catarata é, freqüentemente, considerada como sendo a única manifestação oftalmológica desta desordem, entretanto, a presença de hemorragia vítrea, um achado oftalmológico muito raro, tem sido descrita.

Manifestações tardias incluem retardo de crescimento, ataxia, retardo mental, dispraxia de fala, falência ovariana antes dos 30 anos de idade e catarata. Amenorréia primária e secundária, menopausa precoce e infertilidade têm sido descritas. Também parece haver uma tendência para a menopausa precoce entre as heterozigotas para mutações em GALT.

O princípio do tratamento da galactosemia clássica é a eliminação da lactose da dieta, o que reverte o quadro de falência de crescimento, icterícia, anemia, doença hepática, disfunção tubular renal, a catarata e reduz as mortes com septicemia por gram negativos. A ausência de tratamento, usualmente levará a uma progressiva falência hepática e morte. Entretanto, a restrição dietética não previne o aparecimento das manifestações neurológicas tardias e da disfunção ovariana em pacientes com galactosemia. A letalidade neonatal, causada por esta desordem, é evitada, adotando, para as crianças, com ausência da atividade da enzima GALT, uma dieta com restrição de galactose.

Tratamento

A restrição de galactose tem sido a base da terapia da galactosemia, devido à deficiência de GALT e de GALK desde que MASON e TURNER, em 1935, descreveram que a remoção da galactose da dieta eliminava a síndrome de toxicidade aguda.

Esta melhora, acentuada, trouxe a sensação de que um diagnóstico precoce e a instituição de uma terapia com restrição da galactose na dieta resultaria em crianças normais. Porém, este parece não ser o caso. Na galactosemia por deficiência de GALT, a incidência de distúrbios de fala, retardo mental e falência ovariana, ou seja, de seqüelas tardias não difere em um paciente que tenha tido uma história neonatal normal e tratamento anterior ao início dos sintomas, daquele em que o tratamento foi instituído após a fase inicial.

Três hipóteses propostas foram propostas para explicar a presença de alterações independente do tratamento:

1) Intoxicação crônica por galactose, através do açúcar produzido endogenamente, pela transformação da UDP-glicose, ou pelo açúcar obtido exogenamente, através da dieta;

2) Depleção de metabólitos, que incluem o inosinato (poliol cíclico), o que diminui a concentração de galactitol e açucares ligados a nucleotídeos, como UDPgalactose, levando a um bloqueio da síntese de glicoproteínas e galactolipídeos. Além disto, os baixos níveis de inositol interferem no metabolismo do fosfatidilinositol, com conseqüente prejuízo da sinalização celular;

3) Toxicidade in útero, ou seja, a transferência de galactose através da placenta da mãe para a criança, que não tem como metabolizá-la.

Já o tratamento da galactosemia por deficiência de GALE requer uma estratégia diferente daquela usada nas outras formas de galactosemia. A dieta livre de galactose é possível na deficiência de GALK e GALT, mas não na galactosemia por deficiência de GALE. Desde que a epimerase forma UDP-galactose, à partir de UDP-glicose, a ausência completa de galactose na dieta, e a conseqüente falta da formação de UDP-galactose, trariam sérias conseqüências. A deficiência de epimerase torna o indivíduo dependente da galactose exógena, que é um precursor necessário para a síntese de complexos de glicoproteínas, glicolipídeos, galactoproteínas e galactolipídeos. Portanto, a terapia se restringe em prover pouca quantidade de galactose na dieta, que não provoque toxicidade e supra a quantidade de galactose necessária ao organismo.

Diagnóstico Diferencial

Na deficiência de GALT há anormalidades na córnea, fígado, cérebro, ovário e grande incidência de septicemia por E. coli. Há aumento de gal-1-P, diminuição de UDP-galactose nas hemácias e aumento da excreção renal de galactitol. Por outro lado, a deficiência de GALK tem, como principal achado, a catarata, sem disfunção hepática, renal, ou ovariana e, sem predisposição à septicemia. Com relação ao cérebro, há registros de crianças com pseudotumor cerebral e dois pacientes com retardo mental. Ao contrário dos pacientes com deficiência de GALT, aqueles com deficiência de GALK formam grandes quantidades de galactitol, e não apresenta níveis altos de gal-1-P nas células. Isto sugere que os pacientes com deficiência de GALT sofrem as conseqüências do acúmulo celular de gal-1-P.

Há, somente, dois casos descritos de pacientes com sintomatologia na deficiência de GALE. Um apresentava catarata e o outro septicemia, mas, ambos tinham anormalidades hepáticas, renais e neurológicas. Parece não haver disfunção ovariana. Apesar de muitas semelhanças fenotípicas entre as deficiências de GALT e de GALE, esta última é caracterizada por altos níveis de UDP-galactose nas hemácias.